domingo, fevereiro 03, 2008

"Estórias Reais Imaginadas"


O HOMEM QUE GOSTAVA DAS "CHEGADAS"



O Luís está a observar um casal, ali à esquerda, que depois de esperar mais de uma hora abraça um miúdo acabado de chegar. Provavelmente é o filho. O Luís não sabe de onde veio, nem o que foi fazer. Não lhe interessa. Nem aos pais. A felicidade e os sorrisos naquelas caras e naqueles abraços dizem tudo: "Chegou. Já cá está". E o Luís emociona-se.
Ele gosta muito de vir para o aeroporto. Não para viajar, embora também goste de o fazer, mas para ver. Senta-se à mesa no bar, bebe um café e observa. Os anos foram trazendo experiência nesta "arte" e, assim, o Luís já sabe ao que prestar atenção. Nem todas as pessoas que circulam num aeroporto têm interesse. Pelo menos para aquilo que ele procura. É preciso saber ver, depois escolher e, por fim, saborear.
O Luís tem 68 anos, é casado, tem dois óptimos filhos, já tem dois lindos netos e vem para o aeroporto para ver ("com os olhos que a terra há-de comer em breve", como costuma dizer) emoções reais. Daquelas que nem os melhores filmes ou livros conseguem mostrar. Emoções e sentimentos puros e não fabricados como nas novelas que a mulher tanto gosta de ver. A verdade é que vê ali mais beleza do que alguma vez viu em quadros, telas de cinema, ecrãs de TV ou qualquer outro lugar.
Hoje, o Luís está nas "chegadas". Aqui vê sempre alegria, mesmo se com lágrimas à mistura. A doce felicidade dos reencontros entre aqueles que regressam e aqueles que os esperam.
Está cá o Zé, um colega destas lides. O Luís já conheceu pelo menos mais quatro pessoas que fazem o mesmo, mas já percebeu que há mais. Mulheres, homens, mais velhos, mais novos. São discretos. Não falam muito entre si e, normalmente, sentam-se em mesas diferentes ou circulam sozinhos pelo aeroporto. "Topam-se" uns aos outros. Formam uma espécie de "clube secreto", do qual nenhum deles fala. Um "clube" sem regras, sem organização e de entrada livre. Mas com objectivos claros. Não vêm para aqui confraternizar. Para isso têm os amigos, as jantaradas, as festas ou, no caso do Luís, as "suecadas" com os vizinhos no clube recreativo lá do bairro. Aqui o objectivo é ver sentimentos reais. Sem preço, sem IVA.
O Luís só vem de vez em quando. Na semana passada esteve nas "partidas". Outro mundo, completamente diferente. Muitas lágrimas de tristeza e saudade antecipada. Despedidas mais ou menos emocionadas, dependendo de quem parte, para onde vai e quanto tempo fica. Nessa última vez, viu um rapaz de trinta-e-poucos-anos, sozinho, com pouca bagagem e um ligeiro sorriso, como se deixasse tudo para trás e fosse atrás de novas aventuras.
Mas foi uma excepção optimista naquele ambiente triste e pesado das "partidas". O Luís gosta mais das "chegadas". Claramente.

No aeroporto as pessoas são verdadeiras e normais. São pessoas, no fundo. Nada é encenado ou artificial, mas sim real. A alegria, a tristeza e até a ira quando há cancelamentos ou atrasos nos voos.
Embora observe tudo isto, o Luís não se considera um "voyeur". Pelo menos não no sentido negativo que essa palavra adquiriu mas talvez num possível sentido positivo. Alguém que, não incomodando ninguém, retira prazer daquilo que vê nos outros. Quem não o fez já ?
Ele não sabe qual é a motivação dos restantes membros do "clube", mas a dele é ver sentimentos. Alegres, de preferência. Que o façam recordar o que sentiu em momentos da sua vida.
Como quando ia com o pai à quinta do Sr. Armando, na calada da noite, cortar o pinheiro de Natal ("levar emprestado", como dizia o pai entre risos). Pinheiro que depois ajudava a mãe e a irmã a enfeitar com bolas, fitas e anjinhos. Ou como quando conheceu a mulher num baile de Verão. Ou quando viu nascer os filhos. Ou, expecialmente, quando brincava com eles e lhes pedia para não crescerem, para ficarem sempre assim, a brincar com ele.
Claro que eles crescem e se vão embora. É a vida...
E a vida do Luís é, no essencial, igual às vidas que vê aqui no aeroporto.



JR

3 Comments:

At 9:09 da tarde, Blogger JGProduction said...

boas. mais uma vez muito bom. sem o fatalismo das otas vezes mas com muita realidade e nostalgia no fim. e kem n fez ja o que o luis faz? bem eu proprio dou por mim nos domingos na central a ver pessoas partirem ou as sextas antes de ir para a noite a ver pessoas a chegar.abraxo continua. temos de manter as gg no activo.

 
At 5:36 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Também esperei...
Mas valeu a pena!

BJS

 
At 6:17 da tarde, Anonymous Anónimo said...

É bom partir, a procura de algo novo... mas é também muito bom regressar a tudo o que ja conhecemos, que nos conhece e que sempre nos recebe com saudades!

 

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